segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Na própria carne

Qual o maior direito? Mesmo no estrito âmbito da justiça dos homens, os valores não são todos iguais. Saúde? Família? Respeito? Dignidade? Nenhum destes será importante, dizem os juristas, se não há vida. A vida é, para as criaturas, o maior valor, o maior direito. Consequentemente, em suas leis, o maior crime é aquele que atenta contra a vida.
A questão, feita ao maior responsável pelos valores das sociedades ocidentais, teve outra resposta. Disse aquele homem que, acima de tudo, colocássemos o amor ao que é absolutamente certo, soberanamente justo, perfeitamente bom, situando como consequência natural o amor à porção dessa perfeição máxima que um dia reconheceremos no próximo e em nós mesmos, frutos que somos da mesma árvore, portanto integrantes de uma mesma espécie. Filho de peixe peixinho é e nós, aprendizes de pescadores de essências, deveremos ser capazes de jogar nossas redes novamente e sempre. Com esperança e fidelidade, orienta-nos o professor, a colheita será farta.
A pergunta também foi feita à atriz. Não pela casuística do mundo que exige uma hierarquia de valores para julgar os casos dos indivíduos, não pela astúcia dos homens que montam ciladas à luz para que ela não revele suas sombras. A pergunta lhe foi feita pela doença. Inquirida pela ausência de sua mãe e pela falta que dela sentiu, pelos filhos que não queria que sentissem, questionada pela própria morte, a atriz optou por ambos: pela vida e pelo amor.
No início mais modelo que atriz, ultimamente mais atriz que modelo, com a resposta a atriz passou a ser modelo. Mais modelo que ao pregar a proteção dos refugiados por todo o mundo, mais modelo que ao realizar a proteção dos refugiados em sua própria família. Ali, ela foi modelo como nunca.
Discute-se agora detalhes da cirurgia e também se era a melhor terapêutica. Com todo respeito, pouco importa. O real torna-se insignificante quando o simbólico é eminente. Uma mãe que se amputa como declaração de amor aos filhos, indiretamente à sua própria mãe – e também a outras mulheres com alto risco de câncer – , como declaração de amor à vida, não pode ser reduzida a esses detalhes.
Todos nós temos valores. Um hipotético ser destituído de valores seria tão apagado e inútil quanto um computador que não dispusesse de qualquer programa dentro dele. Estaria morto, mesmo que aparentemente aceso. Assim como serão os programas que darão utilidade a um computador, serão os valores que permitirão a uma criatura avaliar, decidir, pensar. Logo, existir. Esteja alerta.
Até porque a cada um de nós a vida fez ou fará a mesma questão. Outro será o contexto, diversos serão os detalhes, mas todos enfrentaremos decisões delicadíssimas, difíceis. Preste atenção à lição dada pela vida, numa parábola real tão vigorosa como esta, tão inesquecível quanto as outras: em algum momento você também, de alguma forma, será levado a escolher entre sua vaidade, sua identidade, seu próprio corpo, ou a vida e o amor. Esteja preparado.
Talvez também seja preciso cortar na própria carne. 

por Maurício de Araújo Zomignani em Maio de 2013 

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